quinta-feira, setembro 21, 2006

Mercearias de Domingo

Hoje és alguém que vai comigo ao super comprar papel higiénico e não me dá a mão. Alguém que está sempre farto do mundo, com cara de caso e (en)fado. Beijas e abraças por favor, após pedido expresso e verbal. Porque os dos olhos, impressos na tua pele, há muito deixaste de ler. Mesmo com a coisa solene, viras as costas - tens sono. Tens sempre sono ao pé de mim e não suporto que ressones e me acordes com um hálito fétido. Andas com ar de maltrapilho, cabelo por cortar, olhos mortiços...E eu...Eu nem calar-me sei. Não consegui ainda aprender a calar, porque me aflige tua a falta de desejo. Porque mesmo com uma camisolinha de dormir nova, me sinto dentro de um saco de cebolas. Quanto menos desejo tens, mais eu critico. E não calo. E critico. E digo. E redigo: como pareces fazer favores; como deves cortar o cabelo; como deves ir ao médico; como falas alto; como tens falta de respeito pelos outros...Não consigo. Não consigo parar. É como se a minha Palavra pudesse fazer diferença. Mas tu já a mataste com o insecticida que comprei na mercearia fechada. E eu quero pisar este silêncio que se ouve e também não consegue parar. E só me diz e repete – «nada, nada a fazer». E eu posso saber todas as cabriolas do circo e ser a melhor trapezista do mundo. Mas tu fazes notar bem que nada do que diga te faz mudar. Porque já não olhas para o trapézio e até nem gostas de circo. Mas hoje é domingo. Amigável e correcto, vens comigo comprar papel higiénico. Carregas educadamente os sacos e não limpas a minha solidão.